segunda-feira, 16 de novembro de 2009

Do aborto, das novelas e da estranha religiosidade brasileira

Foto: Chakib Jabor




Tá, eu assisto novela. Tá certo, eu poderia fazer alguma coisa melhor, como ler um bom livro, tomar um chope, encontrar amigos (e muitas vezes faço tudo isso mesmo). Mas outras vezes, fico em casa e assisto novela das oito.

O Manoel Carlos não é o meu autor preferido. Acho-o conservador, do pior tipo – aquele em pele de liberal. Não tem humor, não é antenado (sempre a mesma bossa-nova, quando a “típica” música carioca mudou e faz tempo). Um saudosismo que não dá ibope. Mas devo confessar, ele tem os seus méritos, e um deles é o ritmo que dá às histórias. Também o fato de abordar as desgraceiras da vida de uma forma relativamente natural.

No entanto, o autor coloca assuntos delicados de forma parcial e sem questionamento. Um deles é o aborto no Brasil. Manoel Carlos é espírita (e isso ninguém disse nem precisava, basta assistir com um pouquinho mais de atenção a sua trama). Daí uma das personagens, a mãe de Helena, acender uma vela pra santa e outra no “Centro”, mostrando as crenças do brasileiro. Ok: crenças ou falta de personalidade? No que ela acredita, afinal? Em tudo? Pois são religiões com princípios bem diferentes (uma crê no céu e inferno, a outra em reencarnações). E por que (exceto pelos evangélicos, que nesse ponto ao menos são autênticos) o brasileiro tem tanta dificuldade em se desfazer da igreja católica e assumir o espiritismo, o candomblé, etc? Acho isso falta de fé, na verdade. Não dá pra acreditar em coisas opostas ao mesmo tempo.

Lembro de meu avô, em sua cadeira, com seus manuscritos, os óculos de ouro na ponta do nariz. Escreveu quatro livros cujos temas eram o catolicismo, graças às suas fortes origens religiosas do interior de Minas. Era um homem fervoroso, que quase foi padre e ia diariamente à paróquia no bairro de São Mateus, em Juiz de Fora. Confessava, comungava, rezava: enfim, um verdadeiro católico, como nunca mais vi. E também nunca o flagrei pregando qualquer trecho da bíblia, a não ser quando perguntado. Em suas raras catequizações, era breve, porém de uma objetividade brutal. Resolvia e esclarecia a questão, dentro de sua crença.

Mas voltando à novela: Manoel Carlos é espírita e contra o aborto, um claro problema de saúde pública deste país.

Manoel Carlos não é mulher e nunca passou por um dilema de gerar uma criança indesejada. Manoel Carlos é, também, machista. Manoel Carlos, diante de todas essas afirmações, não teria a mínima categoria para falar de assunto tão envolto em preconceitos e muito pouco debatido com a clareza que merece, pois não é neutro. Você vai me dizer que Manoel Carlos tem o direito de colocar a sua opinião, e eu respondo: tendo a novela o papel que tem neste país, não deveria haver uma discussão com dois lados, para que os espectador tirasse as suas conclusões?

O aborto é legalizado quase todos os países chamados desenvolvidos, pois é considerado um direito. Fato: De acordo com a maioria dos cientistas, até oito semanas de gestação, não há cérebro e nem coração no embrião.
É o que eles dizem. Para mim, isso significa que não há dor provocada em algo que ainda não foi formado. Mas você tem uma religião e acredita que exista um “espírito”. Tudo bem, é um direito seu. E não há nada que a impeça de ter o seu filho.

Mas a minha pergunta é: Se você acredita em vida após a morte ou em espírito antes da vida, porque EU sou obrigada a acreditar? Essa é uma verdade absoluta? Há algo concreto que a prove? Pense bem: você está impondo a sua religião e seus dogmas a mim, que posso simplesmente não crer neles. É um direito meu, certo? Neste pais, errado.

Não acho que alguém cuja trajetória ou crença é completamente diferente possa julgar, por exemplo, uma jovem cuja vida está começando, sem condições financeiras nem econômicas de ser mãe. Ou a gravidez natural de uma violência sexual, ou de um feto anencéfalo. Neste caso, o que Manoel Carlos faz é prestar um sesserviço ao nosso povo místico. É claro que a prevenção seria a melhor solução, mas às vezes isso não é possível. De filhos indesejados, o mundo já está cheio – e as experiências não são nada boas.

Mas voltando à novela: Manoel Carlos deixou Luciana tetraplégica e pôs a culpa em Helena (que, lógico, sente-se culpada para todo o sempre por ter feito um aborto). Sua culpa é capaz de aumentar, apenas para provar que quem aborta não tem salvação nesta vida nem na outra.

Está na hora das mulheres pararem de deixar que os homens e os padres (que já erraram em tantas outras questões) decidam sobre suas vidas e seus corpos. Está na hora de pararmos com essa hipocrisia, pois na prática a realidade é completamente diferente. Basta ver o número de abortos clandestinos realizados neste país, tão alarmante que nem me lembro.

E por fim: está na hora de respeitarmos quem pensa diferente.

Obs: Eu nunca fiz um aborto e se hoje engravidasse, provavelmente teria o meu filho(a). Julgo ter condições financeiras e psicológicas (além de um companheiro) pra isso. Mas cada um tem a sua vida, o seu calo apertando e as suas contas pra pagar.

4 Comentários:

Às 16 de novembro de 2009 às 14:39 , Blogger Carla Regina disse...

É o mesmo Manoel Carlos que, em outra novela, puniu a menina que engravida no intercâmbio com a morte no parto. E passa a maldição pra filha dela, que nasce com Down e é rejeitada pela família (mas o menino nasce perfeito, lógico)...

Mô, te respondendo sobre a mãe da menina que acende vela pra santa e no centro, acho que falta profundidade na fé da maioria das pessoas. É uma fé rasa, sem conhecimento de causa. Cordeiros que seguem o que o padre fala e nem pensam porque estão fazendo aquilo. E aí não vêem a contradição que há nisso... Enfim, você sabe que eu ando me afastando da Igreja a cada dia. E coisas como o posicionamento de homens acerca de problemas de saúde das mulheres são motivos pra isso.

Saudade de você.

 
Às 18 de novembro de 2009 às 08:15 , Anonymous Maria-Sem-Vergonha disse...

Pois é Carla, é ou não um machista preconceituoso fantasiado de liberal?

A fé do brasileiro, muitas vezes, me parece ser conveniente com essa coisa de ficar pedindo favores o tempo todo a alguma divindade. Não acho isso nada legal...E sinceramente querida, acho que você está pensando certinho.

Beijão,

 
Às 18 de novembro de 2009 às 09:41 , Blogger - Elis - disse...

Eu não vejo essa novela, detesto o Manoel Carlos e suas tramas cheias de desgraças.
Quanto ao aborto, devia caber à mulher optar se quer ou não o filho, sem Igreja, Estado ou qualquer xiita para condenar.
Um beijo, querida.

 
Às 18 de novembro de 2009 às 11:12 , Anonymous Maria-Sem-Vergonha disse...

assino embaixo como sempre, lili. parece até combinado...hehe

beijos!

 

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