sábado, 25 de outubro de 2008

O Incrível Circo Klaus*

Obra: Mestre Valentim

Hoje não sei...qual a sua graça mesmo? Se soubesse o que iria acontecer, se teria aceitado o convite do senhor Klaus? Hm... bobagem. Nem a cigana Olívia enxergaria em minha mão tamanha coisa. No mais não me arrependo. Quando bebo assim e vêm os demônios à noite, só a lembrança dela já me conforta. Choro, mas depois durmo.

Desde menino tenho habilidade com truques. Minha boa mãe bem que tentou desenvolver em mim algum gosto pelos estudos, sem sucesso. Sabe como menino é. Gostava era das bolinhas de gude e não perdia um jogo de cartas. Ficava pelo bar, atento aos blefes de Nicolau, um sujeito que andava com uma faca, mas que gostava de mim. “Presta bem atenção, moleque”, ele costumava dizer pegando as cartas com uma mão e a minha orelha com a outra, de leve. De tanto olhar aprendi, assim como depois aprenderia com alguns outros. Eu já era o Mister Mandraque e ganhava a vida fazendo mágicas em restaurantes quando conheci o judeu.

Estava desaparecendo com a carteira de um cliente e ele me perguntou se eu tinha família, se gostava de viajar. A essa altura minha mãe já havia morrido. Sou por temperamento preguiçoso e não me agradava a idéia de correr mundo, mas tampouco tinha alguma coisa a perder. Além disso, o dono do restaurante andava me caloteando e eu concordei em acompanhar o Incrível Circo Klaus.

“Mister Mandraque, o maior mágico do mundo!”, gritava o anão pelas ruas de Via de Areia. Não era de todo mentira, porque ali não aparecia nem padre, imagine mágico. Melhor e único. Naquele tempo pouca gente tinha televisão e eu, modéstia à parte, era bom mesmo. Sabe, muita gente me pergunta sobre essa história e eu fico sempre quieto, mas hoje resolvi falar. Não porque é o senhor que pergunta, não vai achando que me levou na conversa. Mas tô precisando falar, vai me fazer bem. Então, eu dizia... Ia levando a vida assim até conhecer Tes, a trapezista.

Maria Tereza era filha de Klaus. Morena de graúdos olhos da cor de um mar que só fui conhecer quando visitei o litoral de meu estado, anos mais tarde. Era uma mulher pequena, de nariz adunco, usava um longo rabo-de-cavalo bem preso em suas apresentações. Achei que fosse uma criança quando a vi quase sem roupa, rodopiando no céu de pano da tenda e atirando os membros para a platéia. Notei a tatuagem de Jesus Cristo em seu ventre, o que me encheu de desejo.

Foi o anão quem contou: a mãe de Tes, a bailarina Jandira, fugiu com o ventríloquo. Seu único amigo era Brutus, o leão. Cresceram juntos. Brutus era um bicho muito valente, que comeu dois adestradores e deixou sem um braço Antônio, o engolidor de espadas. Mas quando Tes entrava na jaula, o animal transformava-se em gato de armazém. Ela acariciava a pelaria, pegava a pata entre suas mãos pequenas, apertava até despontar o unhão. Ele lambia e dava mordidas de carinho; era a única alegria em sua prisão onde, depois de crescido, não conseguia dar um giro completo.


Uma vez tomei coragem e me aproximei. Mas seus olhos eram tão verdes que só consegui dizer “Que dia quente”. Ela sorriu, o que me deu coragem para continuar a conversa. Tes contou que gostaria de ir para o convento das carmelitas, mas o pai não tinha deixado. Não gostava do picadeiro. Imaginei seu belo corpo embaixo de um manto sagrado. Seria a ruína do circo e Klaus sabia disso.
O fato é que a fama de Tes havia corrido. A criançada a adorava e os pais mais ainda. As cadeiras ocupadas, gente até de fora. Repito pro senhor, ninguém tinha televisão.

Perguntei como quem não quer saber muito se ela já havia sido pedida. Bastou para o anão, que gostava de contar: várias vezes vieram pedir a mão para seu Klaus, mas Tes não havia perdido nem a virgindade dos olhos. O pai consultava a filha sobre os pretendentes, não era completamente ruim; pagava pouco, isso é verdade, mas de todo ruim não era não. Queria a felicidade de sua menina e sentia remorso pela mãe. Mas ela não se interessava por nenhum homem. Ficava calada, tinha dias que nem a voz saía. Às vezes parecia um bicho, como o leão.

Até que aconteceu. Uma noite, depois do espetáculo. Estava escuro como breu, mas o lamento de Brutus ecoava como uma maldição. Todos acordaram e quando cheguei com o lampião de gás, vi Tes deitada no chão imóvel, com a roupa rasgada e lágrimas nos olhos de mar. Ainda vivia, mas estava em choque.

Ninguém viu nada, mas eu sabia. Rafi, o motociclista, não respeitou o Jesus tatuado. Ele não tinha medo de ir para o inferno, seu destino final. Era dessas almas atormentadas, incapazes de qualquer bondade. Anos antes, tinha sido o único com coragem para queimar a testa de Brutus, para que pudesse enfrentar o arco do fogo. E depois do acontecido, Brutus mostrava as garras cada vez que ensaiavam o número. Uma vez ia serrar os dentes do animal, como parte do adestramento, mas Tes havia pedido ao pai que não deixasse. Desta vez, ajudado por quatro, o fez. Brutus teve ainda as unhas arrancadas e agora não conseguia apoiar as patas no chão. Por causa da serra, teve o canal aberto que lhe comprometeu a raiz. Seus dentes caíram. Mas além da dor do corpo, tinha uma dor por dentro. Nada mais comia nem bebia.

E veio a última noite. Não se sabe como, eu mesmo não me lembro, mas todo mundo acordou com o clarão na escuridão. Tes e seus olhos brilhantes como nunca, parecia voar. Sua expressão era toda de paz. Ela foi subindo, subindo até não poder mais. De repente, a jaula do leão se abriu e ele saiu trotando, sem a dor nas patas nem nada.
No outro dia, Rafi suicidou-se no Globo da Morte.

È por isso que hoje o senhor vê esses fiéis aí, gente de todo canto. E essas meninas com a tatuagem, virou moda. Todos pedindo a sua graça à Santa Maria Tereza dos Leões, que a Igreja Católica reconheceu, filha de uma brasileira e de um judeu-alemão. Tem gente que duvida, moço, eu mesmo não acreditava em nada. Mas hoje, em situação difícil, peço a bênção pra Tes e ela me atende prontamente. Não sei se é porque eu a amava.


* Livremente inspirado em " O Grande Circo Místico" - (A Túnica Inconsútil - Jorge de Lima - 1938)

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