domingo, 28 de setembro de 2008

Correspondência

obra: Tomie Ohtake

1o mês – Ontem eu recebi uma carta do “diabo”. Ia rasgar, mas não. Envelope em forma de coração. Apartamento 32, pavilhão sete, com amor. Amor de homem não presta. Não fosse ele e eu não estaria nessa ratoeira. Também não teria conhecido Lucinha, minha esposa, minha coisinha. “Nada vai nos separar”, escreveu. Já separou, e foi o bagulho que ele me fez levar. E eu levei. Quando sair nem quero saber. O homem é o cão.



2o mês – Foi ruim de sair. Lucinha chorou. Não posso ver ninguém chorar. Vou esperar por ela, é um amor de carinho. Outra carta. “Carteiro, vá com deus”, o demônio escreveu fora do envelope, para dentro falar de solidão e tristeza. Quer me ver. Em folha separada, uma poesia bonita. Na cadeia até o diabo vira poeta. Mas continuo sem querer saber de homem. Credo.



3o mês – Outra carta, artigo de revista com salmo da bíblia. Artigo 157 é o dele, que teve saidinha por bom comportamento. Chorou tão sentido quando me viu, não posso ver ninguém chorar. Não dei conta de resistir. E eu tava precisando, lá isso eu tava. A Lucinha não tem a ferramenta, né? Mas foi só um dia. Homem não respeita a gente.


4a mês – Dia de visita, céu azul. Acordei duas da manhã, porque a fila pra ver bandido é grande. Abre bolsa, tira roupa, abre a perna, abre tudo. Tudo isso pra ver o diabo. Não volto nunca mais.


5o mês- Peguei o exame no mesmo dia em que descobri que ele mandou a carta pra Elisângela. E pra Jaqueline. A carta era igualzinha: a poesia, o coração. A outra também fez o filho na cadeia. É por isso que eu digo. Enfim, não quero mais saber de homem. Lucinha saiu, vamos nos casar. Ela vai cuidar do meu filho comigo.


6a mês – Ontem eu recebi outra carta do diabo. Ele quer conhecer o filho. Diz que chora muito. Pensando bem, tem o seu direito. Lucinha não pode saber, mas nem pega nada porque é só uma visita. Só uma.

segunda-feira, 15 de setembro de 2008

Alzheimer

Dos dois, quem ficara mais doente era vovó Lia. Apesar de muitas vezes a demência parecer extremamente dolorosa para o vô João, em outras ele aparentava não ter consciência de seu estado. E não tinha mesmo, diziam os médicos. Era questão de tempo para que perdesse completamente a razão, não só de seu próprio quadro clínico, mas de tudo e de todos. A nós, restava esperar, um ato de nenhum esforço e de um esforço tremendo.

Lia tinha a pele flácida que lhe caiam sobre os olhos agora muito fundos, opacos. Os olhos são terríveis delatores e os seus mostravam uma tristeza constrangedora. Estava muito pálida. Seu aspecto era assustador. Pouco restava da mulher mais bonita da cidade do interior do Paraná. Mamãe contou a história: João e Lia apaixonaram-se da maneira mais estúpida que se pode. Ele, que era casado, largou família com três filhos e emprego e fugiu com ela, dezesseis anos mais nova. Não resistiu à sua beleza. Essas histórias eram muito comuns em um tempo, mas quando soube eu o achei um fraco. Depois pensei que não devia ser nada fácil ser valente naquela época. Além disso, não fosse assim, eu não estaria aqui.

Mas agora lá estava vovô, ou aquele outro incapaz de me reconhecer. Lembro-me dele sempre muito ativo, tomando as decisões. Era um homem alto e forte e me levava ao cinema. Comprávamos pipoca doce. Era o dia de visitar os avós, ver os primos: o melhor dia da semana. Hoje penso que a felicidade era muito simples de ser conquistada. Hoje, diante de tudo o que vem acontecendo, perdi muito da capacidade de ser feliz com pouco, como meu avô ensinou.

Mas de que adiantava, se ele mesmo não era mais ele? Vó Lia dizia que ele andava mentindo, inventava um monte de histórias. Sua mente criava fantasias, decerto para preencher o espaço enorme deixado pelas memórias. Normal, o médico disse. Sim, aquele processo lento e tortuoso de degeneração era normal. Todo o mundo morre, de um jeito ou de outro, pensava procurando algum conforto. Restava agora ajudar vó Lia, já que o resto da família estava sempre muito ocupado para dividir um fardo tão pesado. Os irmãos não vieram nem no Natal e tio Gustavo disse que não agüentava vê-lo daquele jeito. Então quem tinha de agüentar éramos nós, as mulheres. Os filhos do casamento anterior não quiseram nem saber. Não os culpo.

Cheguei perto de vovô na cadeira de rodas e senti o cheiro da tradicional loção em sua barba, obra de vovó. Beijei sua bochecha, que afundou como um travesseiro macio e dei-lhe um abraço, apertando-o contra o coração. Ele me olhou muito fixamente, e reconheci naquele olhar o meu vovozinho. Então sorriu com o canto da boca. Eu o apertei ainda mais e chorei muito sinceramente, como costumava fazer no tempo da pipoca e do cinema. De uma estranha forma, foi preciso ele deixar de ser para eu voltar a ser quem já tinha sido.