quarta-feira, 22 de abril de 2009

Personagens femininos da literatura 04 - Lisbeth Salander*

Obra: Xu Wentao

“No entanto, não era a surpreendente falta de emoção em Lisbeth Salander que mais a perturbava. A época exigia investimento na imagem, e a imagem da Milton era a de uma estabilidade conservadora. E Lisbeth Salander correspondia tão pouco a essa imagem quanto uma escavadeira num salão náutico.

Armanskij teve dificuldade de se habituar ao fato de seu melhor cão de guarda ser uma jovem pálida, de uma magreza anoréxica, com cabelos quase raspados e piercings no nariz e nas sobrancelhas. Tinha a tatuagem de uma vespa no pescoço e uma faixa tatuada ao redor do bíceps do braço esquerdo. Nas poucas vezes em que Lisbeth usara uma regata, Armanskij constatara que ela também tinha uma tatuagem maior na omoplata, representando um dragão.

Originalmente ruiva, tingira os cabelos de preto. Parecia estar sempre chegando de uma semana de farra na companhia de uma banda de heavy-metal.
Ela não sofria de distúrbios alimentares – Armanskij estava convencido disso. Ao contrário, parecia consumir qualquer tipo de comida. Simplesmente nascera magra, com uma ossatura fina que indicava um aspecto frágil e delicado de menina, com mãos pequenas, tornozelos estreitos e seios que mal despontavam sob as roupas. Tinha vinte e quatro anos, mas parecia ter catorze.

A boca era larga, o nariz pequeno e as maçãs do rosto altas, o que lhe dava um vago ar oriental. Tinha movimentos rápidos e aracnídeos, e quando trabalhava no computador seus dedos voavam excitados sobre as teclas. O corpo não se prestava a uma carreira de modelo, mas, com uma maquiagem adequada, um primeiro plano de seu rosto não faria má figura num cartaz publicitário. Embora às vezes passasse um nos lábios um repugnante batom preto, e apesar das tatuagens e dos piercings, ela era...digamos...atraente. De um modo totalmente incompreensível.

(...) Durante os doze anos em que Lisbeth Salander foi objeto de cuidados sociais e psiquiátricos, dois deles passados numa clínica pediátrica, em nenhum momento ela respondeu – nem uma vez sequer – à simples pergunta “Como você está se sentindo hoje?”

Lisbeth Salander tinha treze anos quando o tribunal de primeira instância, cumprindo a lei de proteção a menores, decidiu que ela deveria ser internada na clínica de psiquiatria infantil Sankt Stefan, em Uppsala. A decisão se baseava principalmente num parecer segundo o qual ela apresentava distúrbios psiquiátricos e era considerada potencialmente perigosa para seus colegas de classe e eventualmente para si mesma.

Essa suposição se apoiava mais em julgamentos empíricos do que numa análise cuidadosa. Cada tentativa de médicos e professores para iniciar uma conversa sobre seus sentimentos, seus pensamentos ou seu estado de saúde sempre esbarrara, para grande frustação deles, num silêncio compacto, obtuso e num olhar obstinadamente dirigido ao chão, ao teto e às paredes. Ela cruzava os braços de modo sistemático e se recusava a participar de testes psicológicos. Sua total resistência a todas as tentativas de medi-la, pesá-la, cartografá-la, analisá-la e educá-la se aplicava também aos trabalhos escolares – as autoridades podiam levá-la a uma sala de aula e acorrentá-la à carteira, mas não podiam impedi-la de tapar os ouvidos e de se recusar a pegar uma caneta na hora dos testes. Ela deixou a escola sem um boletim de avaliação.

(...) Tinha treze anos quando foi tomada também a decisão de atribuir-lhe um administrador ad hoc para zelar por seus interesses e bens até a maioridade. O administrador designado, o advogado Holger Palmgren, apesar de um começo relativamente difícil, foi bem-sucedido onde psiquiatras e médicos fracassaram. Aos poucos, ganhou não apenas uma certa confiança mas também uma pequena afeição dessa menina complicada.

(...) Isso não quis dizer que ela se transformou em uma moça bem-comportada. Com dezessete anos, Lisbeth Salander foi detida pela polícia quatro vezes, duas delas num estado de embriaguez tão avançado que precisou ser levada ao hospital, e uma vez sob o efeito de drogas. Numa dessas ocasiões, encontraram-na completamente bêbada e com as roupas em desordem no banco traseiro de um carro estacionado na Söder Mälarstrand. Estava acompanhada de um homem também embriagado e consideravelmente mais velho que ela.

(...) o tribunal ordenou um exame psiquiátrico. Fiel a seus hábitos, ela se recusou a responder às perguntas e a participar dos exames, e os médicos consultados pela direção de Saúde e Assistência Social acabaram dando um parecer sobre “suas observações do paciente”. (...) O relatório médico-legal preconizava um acompanhamento numa instituição psiquiátrica. Paralelamente, um subdiretor da comissão de assistência social redigiu um relatório no qual constavam as conclusões da perícia psiquiátrica.

Referindo-se ao quadro de Lisbeth Salander, o relatório mencionava um grande risco de abuso de álcool ou de drogas e falta de instinto de preservação. Seu caso era descrito em termos categóricos: introvertida, socialmente limitada, ausência de empatia, egocêntrica, comportamento psicopata e anti-social, dificuldades de colaboração e de aprendizado. Quem lesse o dossiê podia facilmente concluir que ela tinha um grave retardo. Outro fato também a prejudicava: a equipe de intervenção dos serviços sociais a observara diversas vezes na companhia de diferentes homens nos arredores da rua Mariatorget. Certa vez, fora também interpelada no parque Tantolunden, de novo acompanhada de um homem consideravelmente mais velho. Supunha-se que, de uma forma ou de outra, Lisbeth Salander praticava, ou corria o risco de começar a praticar, a prostituição.

(...) O tribunal de primeira instância estabeleceu que Lisbeth Salander sofria de doença mental, mas que sua loucura não requeria necessariamente internação. Em troca, levou-se em conta a recomendação, feita pelo diretor da assistência social, de uma tutela. Ao que o presidente do tribunal se virou com um sorriso venenoso em direção a Holger Palmgren, que até então fora o administrador ad hoc de Salander, perguntando-lhe se aceitava assumir o papel. O presidente esperava evidentemente que o advogado recuasse e tentasse tirar o corpo fora, mas Palmgren declarou, ao contrário, que se encarregaria com prazer da tarefa de tutoriar a srta. Salander – com uma condição.

“Isso pressupõe, evidentemente, que a senhorita Salander tenha confiança em mim e me aceite como tutor.”

E virou-se para ela. Lisbeth Salander estava um pouco perplexa após as trocas de réplicas disparadas acima de sua cabeça ao longo de toda a jornada. Até então, nunca ninguém pedira sua opinião. Ela olhou demoradamente para Holger Palmgren e então assentiu com a cabeça uma vez.”
*(Do livro: Os Homens que Não Amavam as Mulheres - Stieg Larsson)

segunda-feira, 6 de abril de 2009

A vagabundagem como ideal

Foto enviada por meu tio. “Mineiro e quase ilhéu, mas com nome de outro Estado, Élzio do Espírito Santo em passeio pelas Minas Gerais descobriu uma pracinha em Santana dos Montes que muito lembra a praça do Ribeirão da Ilha. É ou não é?”, diz o colunista Ricardinho Machado no Guia Floripa. Esta é outra foto, da mesma Santana do Montes, que não conheço, mas que só pela imagem consigo sentir. Vida em cidade mineira, com leite, queijo, doce e feijão mineiro. Com velocidade máxima de 20 km por hora para os automóveis, olhe lá. Das pessoas na varanda, pronunciando as palavras no diminutivo. Dos cheiros e cores.

E do gato na janela. Existe coisa mais preguiçosa do que um gato e seu sono vespertino? Basta observar por alguns minutos e sentir baixar a pressão arterial. Ócio em cima do tapete, que a dona estendeu na esperança de livrar-se do pó; partícula interiorana de terra, confunde-se com o pelo, que gruda mas não suja, já que também os micróbios são mineiros.

Passo a páscoa em uma cidadezinha também pequena, chamada São Francisco Xavier, (quase Minas) onde incorporarei a cultura do nada fazer por alguns dias.

Boa oportunidade para citar o meu chinês favorito, Lin Yutang, e sua filosofia do bem viver:

(...) o homem é o único animal que trabalha. Com exceção de uns poucos cavalos de tiro e de bois, até os animais domésticos estão isentos da necessidade de trabalhar. Os cães policiais são raramente chamados a cumprir seu dever; um cão encarregado da vigilância de uma casa brinca quase todo o tempo, e tira uma boa sesta pela manhã cada vez que encontra um lugar quente ao sol; o aristocrático bichano não trabalha para seu sustento, por certo e, como é dotado de uma agilidade que lhe permite não levar em conta o muro do vizinho, não ter consciência do seu cativeiro, vai onde bem lhe parece.

(...) Afinal, a cultura da máquina nos aproxima a passos largos da idade do lazer, e o homem se verá obrigado a brincar mais e trabalhar menos. É tudo questão de ambiente, e, quando o homem tiver os momentos de ócio à sua disposição, verse-á forçado a considerar mais acerca dos meios de desfrutar mais sabiamente esse ócio.

(...) O constante progresso chegará por certo um dia a um ponto em que o homem se sentirá farto de tudo, e começará a fazer o inventário de suas conquistas no mundo material. Não posso crer que, com o advento de melhores condições materiais da vida, eliminadas as enfermidades, diminuída a pobreza, aumentada a média da existência e mais abundante a alimentação, pense o homem ainda em viver na azáfama de hoje Talvez um temperamento mais preguiçoso resulte desse novo ambiente”.

Lin escreveu isso em 1937. É pena que as coisas não tomaram o rumo que imaginou....

Uma páscoa ociosa para todos!